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sábado, 27 de agosto de 2011

A GENTE SE ACOSTUMA




Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter vista que não sejam as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, se esquece do sol, se esquece do ar, esquece da amplidão.
A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociaçôes de paz. E não aceitando as negociações de paz, aceita ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: "hoje não posso ir". A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assitir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,lançado na infindável catarata dos produtos. A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condcionado e ao cheiro de cigarros. Á luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta lá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.
A gente se acostuma a não falar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se costuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto se acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colassanti



PALAVRA DE BLOGUEIRA


Espetacular Marina Colassanti!, uma escritora maravilhosa, escreve com a alma e coração, porque escreve o que gostaríamos de dizer.... tenho apenas divergências, que são tão somente anseios que me fazem acreditar que a gente pode se questionar, sobre aquilo que nos faz mal e que "somos impelidos, condicionados e obrigados a nos acostumar"..não devemos permitir que a acomodação nos faça esquecer do nosso eu, dos nossos sonhos de ser feliz, e de virar a mesa, quebrar o vidro da mesmice e dar nosso grito de Liberdade!, Independência!, ainda que tardia!..(lembrei daquela música-samba-enredo "liberdade,liberdade, abre as asas sobre nós...)ainda que saiba que algumas vezes ela chega mesmo tardiamente!..aproveitemos enquanto há vida, desejos e força para fazer o que se gosta, e abandonar aquilo que nos faz sofrer, ser infelizes e viver pela metade,e não por inteiro! Viver, ser feliz é direito de todos nós!


Norma Bittencourt

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